TDAH e Autismo: Você já se sentiu como se estivesse assistindo a uma peça de teatro onde todos receberam o roteiro, menos você? Aquela sensação de que há uma camada invisível nas interações humanas, um conjunto de regras não ditas que parecem óbvias para os outros, mas que para você é um código complexo e exaustivo de decifrar. Se essa sensação lhe é familiar, saiba que você não está sozinho. Para muitos adultos com Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH), e também para pessoas no espectro autista, as interações sociais podem ser um dos maiores desafios da vida.
Não se trata de falta de vontade de se conectar, de egoísmo ou de não se importar com os outros. Pelo contrário, muitas vezes há um desejo imenso de pertencimento. A dificuldade reside em um campo fascinante e complexo da nossa mente: a cognição social.
Mas o que exatamente é isso? E por que os desafios sociais no TDAH são, por vezes, confundidos com os do Transtorno do Espectro Autista (TEA)? Um recente artigo de revisão publicado na prestigiada revista Neuroscience and Biobehavioral Reviews por Sven Bölte (2025) lança uma luz sobre essa intersecção, ajudando-nos a entender as semelhanças, as diferenças e, mais importante, os caminhos para uma vida social mais plena e satisfatória.
Neste artigo, vamos mergulhar fundo no universo da cognição social. Você vai entender:
- O que é a cognição social e por que ela é crucial para nossas vidas.
- Como o TDAH e o autismo afetam essa habilidade de maneiras distintas.
- O que acontece no cérebro: as bases neurobiológicas por trás desses desafios.
- Estratégias práticas e terapêuticas para aprimorar suas habilidades sociais e construir relacionamentos mais fortes.
Prepare-se para uma jornada de autoconhecimento que pode transformar a maneira como você vê a si mesmo e suas interações com o mundo
Neste artigo sobre TDAH e Autismo
Desvendando a Cognição Social: O GPS das Nossas Relações
Imagine que você está dirigindo em uma cidade desconhecida sem GPS. Você pode até ter um mapa de papel, mas interpretar as ruas, o fluxo do trânsito, as placas e os desvios em tempo real é uma tarefa hercúlea. A cognição social é o nosso GPS interno para o mundo das interações humanas.
Não é uma única habilidade, mas um conjunto de processos mentais que nos permitem perceber, interpretar e responder a informações sociais. De acordo com a neurociência, ela é um construto multifacetado que inclui vários subdomínios. Vamos detalhar os principais:
Teoria da Mente (Mentalização): Lendo as Entrelinhas
A Teoria da Mente (ToM) é talvez o componente mais famoso da cognição social. É a capacidade de “mentalizar”, ou seja, de inferir os estados mentais de outras pessoas — suas crenças, desejos, intenções e emoções. É o que nos permite entender que a pessoa bocejando na nossa frente provavelmente está com sono ou entediada, e não que ela está nos mandando uma mensagem secreta.
- Exemplo prático: Você conta uma piada e seu amigo força um sorriso. Sua Teoria da Mente entra em ação para decifrar: “Ele não achou graça, mas está sendo educado”. Sem essa habilidade, você poderia continuar fazendo piadas semelhantes, sem perceber o desconforto do outro.
Reconhecimento de Emoções: O Dicionário dos Sentimentos
Este é o processo de identificar emoções em outras pessoas através de suas expressões faciais, tom de voz, postura e gestos. É uma habilidade fundamental para a empatia e para regular nossas próprias respostas sociais.
- Exemplo prático: Você chega animado para contar uma novidade ao seu colega de trabalho, mas percebe seus ombros caídos, o olhar baixo e a voz monótona. Seu sistema de reconhecimento de emoções te alerta: “Ele parece triste ou preocupado. Talvez não seja a melhor hora para minha notícia super animada”.
Percepção Social: Captando as Pistas do Ambiente
A percepção social vai além de rostos e vozes. Envolve a compreensão de regras sociais, convenções e o contexto mais amplo de uma situação. É saber como se comportar em um funeral versus em uma festa de aniversário, ou entender a dinâmica de poder em uma reunião de trabalho.
- Exemplo prático: Você está em um jantar com amigos do seu parceiro(a) que você não conhece bem. A percepção social te ajuda a “ler o ambiente”, notar que as conversas são mais contidas e formais, e ajustar seu comportamento para não parecer inadequado ou invasivo.
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TDAH e Autismo: Dois Caminhos, Desafios Similares
Aqui chegamos ao ponto central do artigo de Bölte (2025) e de muitas pesquisas na área. Tanto o TDAH quanto o autismo são caracterizados por desafios sociais, mas as razões subjacentes são diferentes. É como se dois carros tivessem dificuldade para subir a mesma ladeira: um pode ter um problema no motor (dificuldade primária), enquanto o outro tem um problema nos freios que o impede de acelerar corretamente (dificuldade secundária).
Cognição Social no Autismo: A Questão do Processamento Implícito
No autismo, a pesquisa sugere que a alteração na cognição social é uma característica central e definidora do transtorno. A dificuldade parece estar, primariamente, no processamento implícito e intuitivo da informação social.
- O que isso significa? A “leitura” automática e sem esforço das pistas sociais, que para pessoas neurotípicas acontece em milissegundos, pode não ocorrer da mesma forma em pessoas no espectro autista. Elas podem precisar usar a lógica e o raciocínio explícito (processamento cognitivo) para decifrar situações que outros entendem intuitivamente. Isso é mentalmente exaustivo e mais sujeito a erros.
- A Hipótese da Dupla Empatia: É crucial mencionar aqui a teoria da “dupla empatia”. Ela sugere que a dificuldade de comunicação não é uma via de mão única (um “déficit” da pessoa autista), mas uma quebra mútua de entendimento entre pessoas autistas e não-autistas. Nossos “sistemas operacionais” sociais são diferentes, levando a falhas de comunicação de ambos os lados.
Cognição Social no TDAH: O Impacto das Funções Executivas
No TDAH, a história é um pouco diferente. A pesquisa indica que o desempenho de pessoas com TDAH em testes de cognição social fica em um ponto intermediário entre os grupos autistas e os neurotípicos. A principal hipótese é que as dificuldades sociais no TDAH são, em grande parte, secundárias aos déficits nas funções executivas.
As funções executivas são o “CEO” do nosso cérebro. Elas gerenciam, planejam, organizam e regulam nossos pensamentos e ações. As principais envolvidas são:
- Controle Inibitório: A dificuldade em frear impulsos. Socialmente, isso se manifesta como interromper os outros, falar sem pensar, fazer comentários inadequados ou ter reações emocionais exageradas (desregulação emocional). Você sabe qual é a regra social, mas seu cérebro impulsivo “atropela” esse conhecimento.
- Memória de Trabalho: A capacidade de manter informações na mente enquanto realiza uma tarefa. Em uma conversa, a memória de trabalho é essencial para acompanhar o que foi dito, lembrar o nome das pessoas e formular uma resposta coerente. Com um déficit nessa área, você pode se perder no meio da conversa, esquecer o que ia dizer ou não conseguir “segurar” as pistas sociais para interpretá-las.
- Atenção: A dificuldade em sustentar o foco e filtrar distrações. Durante uma interação, a desatenção pode fazer você “viajar”, perder partes importantes da conversa e parecer desinteressado, mesmo que não seja a sua intenção. Você pode não captar uma expressão facial sutil simplesmente porque sua atenção estava em outro lugar naquele exato momento.
Em resumo: Uma pessoa com TDAH pode ter a “biblioteca” de regras sociais (Teoria da Mente, reconhecimento de emoções) relativamente intacta, mas a “secretária” (funções executivas) que deveria buscar, organizar e usar essas informações em tempo real é caótica e sobrecarregada.
O Cérebro Social: Uma Olhada na Neurobiologia
As diferenças entre TDAH e autismo também se refletem na atividade cerebral. Embora haja sobreposições, os circuitos neurais mais afetados em cada condição apontam para a origem distinta dos desafios sociais.
- No Autismo (TEA): Estudos de neuroimagem frequentemente mostram alterações em circuitos cerebrais diretamente ligados à cognição social e à linguagem. Áreas como o sulco temporal superior (envolvido na percepção de movimento biológico e pistas sociais), o giro fusiforme (processamento de faces) e a amígdala (processamento emocional) podem funcionar de maneira diferente. Isso reforça a ideia de uma alteração primária no processamento da informação social.
- No TDAH: As alterações cerebrais mais proeminentes estão nos circuitos fronto-estriatais, que são a base das funções executivas e do sistema de recompensa. Regiões como o córtex pré-frontal (o nosso “CEO”), o corpo estriado (envolvido no controle motor e recompensa) e o cerebelo (coordenação e timing) são consistentemente implicadas. O mau funcionamento desses circuitos explica a impulsividade, a desatenção e a desregulação que, por sua vez, sabotam o desempenho social.
É como se no autismo, o “hardware” específico para processamento social tivesse uma arquitetura diferente, enquanto no TDAH, o “sistema operacional” geral que gerencia todos os programas (incluindo o social) estivesse com falhas.
Da Teoria à Prática: Recomendações Terapêuticas e Estratégias para o Dia a Dia
Entender a teoria é empoderador, mas o objetivo final é melhorar a qualidade de vida. Felizmente, existem estratégias e intervenções eficazes que podem ajudar a navegar no complexo mundo social, tanto para o TDAH quanto para o autismo.
Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC) para Desafios Sociais no TDAH
A TCC é uma abordagem padrão-ouro para o TDAH adulto e pode ser adaptada para focar especificamente nos desafios sociais.
- Psicoeducação: O primeiro passo é exatamente o que você está fazendo agora: entender por que as coisas são difíceis. Compreender que interromper os outros não é uma falha de caráter, mas um sintoma do controle inibitório prejudicado, remove a culpa e abre espaço para a mudança.
- Treinamento de Habilidades Sociais Explícitas: A terapia pode funcionar como um “treinador” de habilidades sociais. Isso envolve aprender e praticar de forma explícita:
- Escuta Ativa: Técnicas para manter o foco no interlocutor, como parafrasear o que foi dito (“Então, se eu entendi bem, você está dizendo que…”) e fazer perguntas abertas.
- Gerenciamento de Conversas: Aprender a iniciar, manter e encerrar conversas de forma apropriada. Praticar a “regra do revezamento”, esperando sua vez de falar.
- Leitura de Pistas Não-Verbais: Analisar vídeos ou fotos para identificar emoções e intenções, tornando o processo de leitura de pistas sociais mais consciente e deliberado.
- Reestruturação Cognitiva: A TCC ajuda a identificar e desafiar pensamentos automáticos negativos no TDAH e Autismo que surgem de experiências sociais ruins. Por exemplo, substituir “Todo mundo me acha chato porque eu interrompo” por “Eu tenho dificuldade em não interromper por causa do meu TDAH, mas estou trabalhando nisso e posso me desculpar se acontecer”.
- Estratégias para as Funções Executivas: O terapeuta pode ajudar a criar “andaimes” para compensar as dificuldades executivas em contextos sociais. Por exemplo, antes de um evento, planejar alguns tópicos de conversa (para aliviar a carga da memória de trabalho) ou definir um objetivo simples, como “vou tentar não interromper nas próximas duas conversas”.
Intervenções Neuropsicológicas e Outras Abordagens
A reabilitação neuropsicológica foca em treinar as funções cerebrais subjacentes.
- Treinamento de Funções Executivas: Existem programas e exercícios computadorizados ou de papel e caneta que visam melhorar a memória de trabalho, o controle inibitório e a flexibilidade cognitiva. Embora a transferência direta dessas habilidades para situações sociais complexas ainda seja debatida, elas podem fortalecer a base necessária para um melhor desempenho social.
- Mindfulness (Atenção Plena): A prática de mindfulness é extremamente poderosa para o TDAH. Ela treina a atenção e a consciência do momento presente, o que pode ajudar a reduzir a impulsividade e a “sintonizar” melhor nas conversas, percebendo mais pistas sociais em tempo real.
- Medicação: O tratamento medicamentoso para o TDAH (estimulantes e não-estimulantes) atua diretamente nos circuitos de atenção e controle inibitório. Para muitas pessoas, a medicação é a base que torna as estratégias terapêuticas possíveis e eficazes. Ao “acalmar” o cérebro, ela abre uma janela de oportunidade para aplicar as habilidades sociais aprendidas.
Construindo Pontes para a Conexão
Navegar pelo mundo social com TDAH ou autismo pode ser um desafio, mas está longe de ser uma sentença de isolamento. A ciência, como nos mostra o trabalho de Bölte e tantos outros pesquisadores, está desvendando as complexas engrenagens por trás dessas dificuldades.
A principal mensagem entre TDAH e Autismo é de esperança e autocompaixão. Seus desafios sociais não são uma falha de personalidade. Eles são o resultado de uma neurobiologia diferente, uma maneira única de processar o mundo. No TDAH, a impulsividade e a desatenção, alimentadas por déficits nas funções executivas, muitas vezes sabotam as melhores intenções sociais. No autismo, a dificuldade pode ser mais fundamental, ligada à própria decodificação intuitiva do código social.
Compreender a distinção entre TDAH e Autismo é o primeiro passo para encontrar as ferramentas certas. Seja através da TCC, do treinamento de habilidades, do mindfulness ou do tratamento medicamentoso, é possível construir pontes sobre os vales da incompreensão. É possível aprender a usar um “GPS” mais explícito para navegar nas interações, reduzindo a exaustão e aumentando a alegria da conexão humana.
Lembre-se: sua neurodivergência também traz forças. Hiperfoco, criatividade, paixão, honestidade. Ao gerenciar os desafios, você libera ainda mais espaço para que suas qualidades brilhem em suas relações.
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