Nos últimos dias, surgiram manchetes polêmicas afirmando que o uso de Tylenol (acetaminofeno) durante a gravidez poderia estar ligado ao risco de autismo em crianças, e que o tratamento com leucovorin (ácido folínico) poderia ser uma terapia promissora para sintomas do autismo. Essas alegações ganharam repercussão política e midiática, mas envolvem afirmações científicas que requerem exame cuidadoso.
Esse debate pode interessar muito à comunidade TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade) e mais amplamente ao de transtornos do neurodesenvolvimento no Brasil, porque boa parte das discussões científicas sobre autismo tangenciam com mecanismos bioquímicos, ambientes de risco e uso de medicações na gravidez, áreas que muitas famílias dessa comunidade acompanham com atenção.
Neste artigo sobre Tylenol na Gravidez e Autismo
1. Pano de fundo: o que está sendo alegado
1.1 Tylenol / Acetaminofeno na gravidez
Tylenol é uma marca conhecida do analgésico/paracetamol (ou acetaminofeno, nos EUA). É frequentemente usado por gestantes para aliviar dor ou febre, justamente porque muitas outras drogas são contraindicadas ou apresentam riscos durante a gravidez.
Recentemente, autoridades nos EUA anunciaram que o FDA (Food and Drug Administration) iniciaria um processo para alterar o rótulo de segurança do acetaminofeno, indicando a possibilidade de associação entre uso durante a gravidez e maior risco de condições neurológicas como autismo e TDAH.
Ainda segundo o comunicado, médicos teriam recebido um alerta para considerar essas evidências potenciais.
A alegação geral que ganhou repercussão pública é: “não use Tylenol na gravidez porque pode aumentar o risco de autismo”. Essa afirmação tem gerado controvérsia intensa, reações de especialistas e comunicados de instituições de pesquisa.
1.2 Leucovorin (ácido folínico) como “tratamento” em autismo
Leucovorin, também chamado de folínico, é uma forma ativa de folato (vitamina B9) já usada em outras condições médicas (por exemplo, para “resgatar” células de pacientes submetidos a certos medicamentos de quimioterapia).
A proposta que tem circulado é que a administração de leucovorin em crianças com autismo (ou sintomas neurológicos associados) poderia melhorar habilidades verbais ou de comunicação, especialmente em casos em que exista deficiência de folato cerebral ou disfunção no transporte do folato para o cérebro (situação conhecida como deficiência cerebral de folato, ou cerebral folate deficiency – CFD).
Em comunicados oficiais recentes, foi indicado que leucovorin poderia ser considerado “promissor” para tratar sintomas de autismo associados a essa deficiência de folato cerebral.
A combinação dessas duas afirmações – “Tylenol causa autismo” e “leucovorin cura ou melhora o autismo”, tem sido debatida intensamente, com fortes contestações dos especialistas.
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– O que é TDAH? O Guia Definitivo Para Entender o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade
2. O que dizem os estudos científicos até agora
É fundamental distinguir entre associação estatística e causalidade, além de estar atento às limitações metodológicas dos estudos.
2.1 Sobre associação entre uso de acetaminofeno na gravidez e risco de autismo / TDAH
Alguns estudos epidemiológicos têm relatado uma associação entre o uso de acetaminofeno durante a gravidez e aumento no risco posterior de autismo ou TDAH na criança. Os resultados variam bastante entre estudos, com diferentes tamanhos de efeito e significância.
Por exemplo, no artigo “What the evidence tells us about Tylenol, leucovorin, and autism”, é narrado que várias pesquisas identificaram que mães que usaram acetaminofeno relatam taxas um pouco mais altas de filhos diagnosticados com autismo ou TDAH. STAT
Porém, muitos desses estudos lidam com desafios grandes:
- Viés de confusão familiar / genético: famílias que têm predisposição genética a transtornos do neurodesenvolvimento podem ter também maior probabilidade de dores, enxaquecas ou uso de analgésicos durante a gravidez, o que pode criar uma correlação espúria. Alguns estudos que comparam irmãos expostos vs não expostos (dentro da mesma mãe) tentam controlar esse viés.
- Dados de autorrelato: muitos estudos dependem de questionários maternos (lembrança retroativa de quantas vezes usou acetaminofeno), o que pode introduzir erro de memória (erro de viés de memorização).
- Dose, duração e timing: os estudos variam muito em como medem o “uso”, uso esporádico vs crônico, nos primeiros trimestres ou no final da gestação. Alguns achados sugerem que o risco pode surgir com uso prolongado ou repetido.
- Magnitude do risco: quando se observa uma associação, muitas vezes o aumento de risco é modesto, por exemplo 5–20 %.
- Estudos contraditórios / nulos: há trabalhos que, ao controlar fatores genéticos/família, não observam associação significativa entre o uso de acetaminofeno e autismo/TDAH.
Um exemplo citado no artigo da STAT: um estudo sueco com 2,5 milhões de crianças entre 1995–2019 comparou irmãos expostos e não expostos. Embora inicialmente houvesse uma associação, ela “desapareceu” quando comparações dentro da mesma mãe eram feitas, sugerindo que fatores hereditários ou familiares poderiam explicar a diferença.
Além disso, a própria agência regulatória dos EUA reconhece que, embora haja evidências sugerindo uma associação, não foi demonstrada causalidade.
Também vale notar que o uso de acetaminofeno durante a gravidez já foi considerado seguro em muitos regimes clínicos, e é um dos poucos analgésicos considerados relativamente seguros para dor/fever nesse período.
Resumindo: existe alguma evidência de correlação, mas não consenso nem prova de que usar acetaminofeno cause autismo ou TDAH.
2.2 Sobre leucovorin como intervenção no autismo
A ideia de usar leucovorin para indivíduos com autismo baseia-se, em parte, em casos de deficiência de folato cerebral (CFD – cerebral folate deficiency), condição na qual, embora os níveis de folato no corpo estejam normais, o transporte de folato para o cérebro é deficiente, provocando sintomas neurológicos que se assemelham a algumas características do autismo.
Em estudos clínicos relativamente pequenos, algumas melhorias foram observadas em habilidades verbais ou de comunicação em pacientes tratados com leucovorin. Por exemplo:
- Um estudo randomizado com 80 crianças autistas (2 a 10 anos) que receberam leucovorin vs placebo por 24 semanas mostrou que o grupo tratado teve uma diferença modesta (1,2 pontos em uma escala de 60 pontos) no escore de gravidade do autismo.
- Em relatórios agregados de 23 publicações entre 2009 e 2024, o órgão de saúde dos EUA relatou que cerca de 85% dos casos com deficiência de folato cerebral tratados mostraram algum benefício clínico (melhoria na fala/comunicação).
Apesar desses resultados promissores, há ressalvas:
- Os tamanhos dos estudos são pequenos e, muitas vezes, não houve replicações maiores e mais robustas.
- O efeito relatado é modesto e não significa “cura” do autismo.
- A segurança do uso a longo prazo em populações autistas ainda não foi bem estudada.
- Nem todos os autistas têm deficiência de folato cerebral, de modo que leucovorin não seria uma terapia aplicável a todos.
- Há risco de expectativas exageradas ou de desvio de recursos de intervenções já mais bem validadas.
Portanto, embora leucovorin seja uma via de investigação interessante, ele ainda deve ser considerado experimental no contexto do autismo geral, não uma terapia consolidada.
2.3 Como o comunicado oficial dos EUA trata o tema
No comunicado “Autism Announcement Fact Sheet” do governo dos EUA, feito durante apresentações recentes, consta que:
- Leucovorin foi destacado como “promissor” para sintomas de autismo, mas dentro do contexto de deficiência de folato cerebral.
- Que o FDA pedirá atualização no rótulo de acetaminofeno para refletir “evidência sugerindo associação possível entre uso durante a gravidez e risco neurológico (autismo / TDAH)”.
- Que muitos dos dados usados são de casos clínicos e estudos pequenos, não de grandes ensaios clínicos randomizados.
- Que a deficiência de folato cerebral (CFD) é rara, mas que pode haver impacto aumentável se a manifestação autoimune da CFD estiver presente nos indivíduos com autismo.
Esse posicionamento oficial não afirma com convicção que o uso de acetaminofeno causa autismo, nem que leucovorin é uma cura, mas sugere que o tema merece mais investigação regulatória.
3. Críticas, ressalvas e desafios metodológicos
Para que possamos interpretar essas alegações com prudência, é essencial conhecer os principais pontos de crítica e limitação dos estudos. Aqui estão os mais relevantes:
3.1 Conflito entre associação e causalidade
Uma associação estatística entre duas variáveis (uso de medicamento e diagnóstico) não implica necessariamente causalidade. Muitas vezes há fatores de confusão, variáveis ocultas que influenciam ambas. Por exemplo:
- Predisposição genética: mães com predisposição genética a transtornos neuropsiquiátricos podem ter maior frequência de dor, uso de analgésicos ou outras comorbidades, o que pode confundir os resultados.
- Causas subjacentes: condições como inflamação, infecções no período gestacional ou febres podem levar ao uso de acetaminofeno e estar associadas a risco neurológico.
- Viés de seleção ou memória: quem tem um filho autista pode se lembrar mais de usar medicamentos, ou procurar justificativas retrospectivas (viés de confirmação).
- Comparações entre irmãos: algumas das análises mais robustas usam irmãos expostos vs não expostos, para controlar genética familiar, e muitas vezes a associação diminui ou desaparece em comparação dentro da mesma mãe.
3.2 Falta de ensaios clínicos randomizados
Para demonstrar causalidade e avaliar segurança/effectividade, o padrão ouro é o ensaio clínico randomizado (ECR). Até o momento, não há grandes ECRs que testem diretamente “uso de acetaminofeno na gravidez vs placebo” por razões éticas óbvias, nem grandes ECRs que testem leucovorin contra placebo em amplas populações autistas. Isso limita o grau de certeza que podemos ter.
3.3 Heterogeneidade do autismo
O autismo não é uma única “doença”, mas um espectro com muitos perfis, causas e apresentações clínicas. O que funciona, ou parece funcionar, para um subgrupo (por exemplo, com deficiência de folato cerebral) pode não se aplicar a outros. Portanto, generalizar resultados é arriscado.
3.4 Efeito modesto e risco de viés de publicação
Mesmo nos estudos que mostram benefício, os efeitos são frequentemente modestos, e o viés de publicação (apenas resultados positivos serem publicados) pode inflar a percepção de eficácia.
3.5 Pressão midiática e politização
Como vimos, o tema se misturou a anúncios políticos e campanhas de mídia. Isso gera o risco de conclusões precipitadas, alarmismo excessivo e confusão entre evidência científica e narrativa política. Além disso, algumas críticas apontam que os comunicados públicos exageraram a certeza das afirmações.
3.6 Risco de afastamento de intervenções já consolidadas
Se famílias passarem a focar demasiadamente no uso de leucovorin ou evitar o uso de acetaminofeno por medo, podem deixar de priorizar intervenções já bem estudadas (terapias comportamentais, intervenções educacionais, suporte psicossocial etc.). Há risco de expectativas irreais, frustrações ou gastos desnecessários.
4. Implicações práticas para o Brasil (e para a comunidade TDAH/Neurodesenvolvimento)
Embora muitos dos estudos e debates estejam centrados nos EUA e Europa, há lições práticas para o contexto brasileiro e para quem convive com TDAH ou autismo.
4.1 Para gestantes e mulheres que planejam gravidez
- Não tomar decisões precipitadas: Evite conclusões radicais (“nunca use Tylenol”) baseadas em manchetes sensacionalistas.
- Consulte seu médico obstetra / neurologista / clique com especialistas: Cada caso deve ser analisado individualmente, se houver febre persistente ou condição que justifique analgésico, o médico avaliará a relação risco-benefício.
- Usar o princípio do “menor dose eficaz, por menor tempo possível”: Quando um analgésico for necessário, use a menor dose eficaz e apenas por tempo necessário (essa é uma recomendação convencional de prudência).
- Controle da febre é importante: A febre elevada na gravidez pode apresentar riscos fetais independentes do uso de medicações, então não se trata de simplesmente “não usar nada”, trata-se de fazê-lo com orientação.
- Não substituir medicamento por riscos maiores: Alternativas como anti-inflamatórios ou outros fármacos podem apresentar riscos ainda maiores ao feto se usados incorretamente.
- Atenção à origem e regulamentação do medicamento: No Brasil, muitos medicamentos são similares ou genéricos, e o uso deve seguir orientação médica e legislação vigente.
4.2 Para famílias e cuidadores de pessoas com autismo ou TDAH
- Entender o papel de intervenções combinadas: Mesmo se um tratamento como leucovorin se mostrar benéfico em alguns casos, ele provavelmente será mais útil como complemento às intervenções comportamentais, educacionais e terapêuticas já estabelecidas, e não substituto.
- Consultar médico e laboratórios antes de usar suplementos ou terapias experimentais: Se houver hipótese de deficiência de folato cerebral, isso deve ser investigado com exames especializados, e o uso de leucovorin deve ser supervisionado.
- Ter expectativas realistas: Não há, até agora, evidência de que leucovorin “cura” o autismo. Melhorias modestas são possíveis em subgrupos bem definidos.
- Monitorar efeitos adversos: Embora leucovorin seja geralmente considerado seguro em outros contextos, seu uso prolongado ou em doses elevadas requer monitoramento profissional.
- Atenção ao custo-benefício: Algumas terapias experimentais podem ser caras, então a família deve ponderar os potenciais ganhos frente aos riscos e custos.
4.3 Para profissionais de saúde, pesquisadores e comunicadores
- Cautela na comunicação: Evitar alegações absolutas ou alarmistas (“Tylenol causa autismo”) quando a evidência é incerta.
- Promover pesquisas rigorosas no Brasil: Há uma lacuna de estudos em populações brasileiras que poderiam investigar associações locais entre uso de analgésicos na gravidez e neurodesenvolvimento.
- Incluir controle genético/familiar nas análises: Estudos epidemiológicos futuros devem considerar desenhos robustos que minimizem viés de confusão.
- Divulgar limitações metodológicas: Quando publicar ou comunicar ao público, deixar claro onde as evidências são fracas ou provisórias.
- Articular com políticas regulatórias: Se novas evidências confirmarem riscos ou benefícios, considerar atualização de bulas, alertas de segurança e diretrizes clínicas.
5. Perguntas em aberto e sugestões de investigação futura
O estado atual do conhecimento deixa várias perguntas sem resposta:
- Qual é o mecanismo biológico, se houver causalidade, entre uso de acetaminofeno e risco neurológico (autismo ou TDAH)?
- Quais são as janelas gestacionais críticas (primeiro trimestre, segundo ou terceiro) em que o uso do medicamento representaria maior risco?
- Qual a dose e o tempo de exposição necessários para gerar risco elevado, caso ele exista?
- Em quais subgrupos genéticos ou biomarcadores a associação poderia ser mais forte? (por exemplo, variantes genéticas de metabolismo, transporte de folato etc.)
- Quão eficaz é o tratamento com leucovorin em diferentes perfis de autismo, e com que dose / duração ideal?
- Quais são os efeitos adversos ou risco de longo prazo do uso de leucovorin em populações autistas?
- Ensaios randomizados bem controlados (com bom poder estatístico) poderiam ser feitos em subgrupos definidos?
- Estudos em populações não ocidentais (Latinas, brasileiras etc.) para ver se os achados são replicáveis em diferentes contextos ambientais e genéticos.
- Impacto de interações entre medicamentos, suplementos e nutrientes maternos (por exemplo, dieta, ingestão de folato, exposição a poluentes) no risco neurológico.
Responder essas perguntas exigirá colaboração entre pesquisadores clínicos, epidemiologistas, geneticistas e comunidades de pacientes.
6. Conclusão e posicionamento cauteloso
O debate sobre acetaminofeno (Tylenol) na gravidez, risco de autismo / TDAH e uso de leucovorin como intervenção toca em temas sensíveis: saúde materna, vulnerabilidade fetal, busca de terapias para transtornos do neurodesenvolvimento.
Com base nas evidências até hoje:
- Há indícios de associação estatística entre uso de acetaminofeno na gravidez e risco neurológico, mas esses indícios não comprovam causalidade.
- Leucovorin, em alguns estudos pequenos, tem mostrado resultados promissores em melhorar aspectos de comunicação ou fala em subgrupos com deficiência de folato cerebral, mas não há consenso nem ensaios robustos que o recomendem como terapia padrão para autismo.
- É importante que qualquer uso ou recomendação leve em conta o equilíbrio entre risco e benefício, especialmente durante a gravidez e no desenvolvimento infantil.
- Famílias, gestantes e profissionais de saúde devem adotar uma postura crítica, informada e colaborativa, consultando especialistas, evitando conclusões precipitadas e mantendo expectativas realistas.
Para a comunidade TDAH Brasil, a lição é: temas que envolvem medicamentos, nutrição e neurodesenvolvimento exigem rigor científico, cautela e comunicação responsável. Esse tipo de polêmica reforça a importância de fortalecer pesquisas nacionais e de proporcionar informação acessível, baseada em evidência, para famílias, profissionais e gestores de saúde.
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